O activista Luaty Beirão disse hoje que a proibição da marcha prevista para quarta-feira, Dia da Independência de Angola, carece de fundamento legal e sublinhou que o governo também é obrigado a cumprir as leis. “Olha que não, olha que não”. Isso de o governo ter de cumprir a leis é só nas democracias, nos Estados de Direito.
“N enhum dos argumentos apresentados pelo governo provincial [de Luanda] serve de justificação para impedir a manifestação, para além de que teriam 24 horas para o fazer”, disse à Lusa Luaty Beirão, um dos activistas – recorde-se – condenados no célebre processo 15+2, em 2016, acusados de prepararem um golpe de Estado contra o Governo do MPLA de José Eduardo dos Santos e mais recentemente condecorado pelo Presidente João Lourenço.
“A carta [dos organizadores da marcha] deu entrada no dia 4, a resposta está a vir hoje. O governo também tem de se sujeitar às leis, não pode exigir só dos cidadãos e, neste caso, se eles queriam invocar esses fundamentos tinham de invocar por escrito e submeter a cada um dos subscritores, nas moradas por eles indicadas. Não tendo feito isso, diz a lei que a manifestação está automaticamente legitimada e qualquer outra decisão é extemporânea, não se aplica”, destacou o activista.
O protesto, que visa exigir tudo o que na óptica do MPLA não faz sentido, como sejam a melhoria das condições sociais e eleições autárquicas em 2021, foi convocado pelos organizadores da manifestação do passado dia 24 de Outubro, violentamente reprimida pela polícia, e que acabou com a detenção de uma centena de manifestantes, incluindo alguns jornalistas.
Os promotores do protesto de quarta-feira, data em que se assinalam os 45 anos da compra de Angola pelo MPLA, disseram que o governo provincial de Luanda proibiu a manifestação, mas mantêm a intenção de sair à rua e, portanto, levar porrada da Polícia do MPLA.
“Vai acontecer o que sempre aconteceu, as pessoas vão sair na mesma – as que sabem que podem desafiar uma ordem ilegítima – e vai haver confusão, mas que não é gerada pelas pessoas que defendem os seus direitos. Isto é uma sonegação de direitos que estão a tentar fazer”, comentou Luaty Beirão.
O activista destacou, por outro lado, que no decreto presidencial anterior relativo à situação de calamidade pública já existiam limitações de ajuntamentos na via pública — limitados antes a dez pessoas e agora a cinco — mas ambos os diplomas contêm um artigo que diferencia os ajuntamentos das reuniões e outras actividades.
“Há um artigo que diferencia esses ajuntamentos públicos de actos como reuniões e actividades. Suprimiram a palavra manifestações no último decreto, mas a lei é igual. Eles [o governo] estão a forçar essa ideia dos ajuntamentos, para dar ideia de que estão proibidos, mas esta reunião, que é uma manifestação, não está dentro dos ajuntamentos. Ambos os decretos têm essa distinção”, sublinhou.
A lei do MPLA é a que mais ordena
Juristas angolanos que pensam pela própria cabeça (uma espécie que poderá ser extinta em breve) concordam que o decreto do estado de calamidade pública não se sobrepõe à Constituição, pelo que não pode restringir direitos e garantias fundamentais dos cidadãos, como as manifestações.
As manifestações recentes têm sido proibida pelas autoridades em função do Decreto Presidencial 276/20, de 23 de Outubro (feito à medida para cilindrar os protestos), que alterou algumas medidas de combate e prevenção da Covid-19, como a não aceitação de ajuntamentos na rua superior a cinco pessoas, devido ao aumento significativo (pelos vistos só detectado na véspera da anterior manifestação, no dia 24 de Outubro) de casos e mortes nas últimas semanas.
Sobre este decreto, o advogado Bangula Quemba, sublinhou que a Constituição da República de Angola (sim, é mesmo a que é dominada há 45 anos pelo MPLA) apresenta três situações de excepção constitucional, em que podem ser limitados, restringidos, direitos fundamentais, concretamente os estados de emergência, de guerra e de sítio.
Segundo Bangula Quemba, o estado de calamidade “não é uma situação sequer prevista na Constituição”, tendo sido há pouco tempo integrada na Lei da Protecção Civil.
“Mas em nenhuma situação do estado de calamidade se restringem direitos, liberdades fundamentais, ou seja, não há dúvida que o que está em causa aqui são conflitos de dois direitos, o direito à manifestação e depois o direito à saúde pública, por causa da pandemia”, disse.
Para Bangula Quemba, deve prevalecer nessa situação “o bom senso”, que significa que “as manifestações devem ser permitidas e não restringidas, como estão a ser feitas, mas permitidas exactamente nos limites que possa salvaguardar a saúde pública”.
O causídico considerou que se houvesse alguma paciência por parte das autoridades (as tais que são do MPLA e não do país) e mais diálogo com os jovens manifestantes, “que, apesar de ser uma coisa utópica e daria muito trabalho”, era possível organizar-se grupos de cinco pessoas e os mesmos fazerem uma marcha pacífica, tal como – aliás – estava previsto.
“Acho que aqui falta exactamente esse equilíbrio, essa ponderação, por parte das autoridades competentes e, infelizmente, vão logo pela repressão e pela anulação das manifestações”, disse reiterando que “um decreto não está acima da Constituição”. Mais uma vez, como faz parte do seu ADN, para o MPLA só conta a razão da força, mandando a força da razão para a cadeia alimentar dos jacarés.
Por seu turno, o advogado Sebastião Assureira lembrou que o artigo 58 da Constituição (a tal que o MPLA aceitou embora tendo-lhe colado o rótulo de “imposta”) apresenta as situações em que são limitados direitos fundamentais dos cidadãos – o estado de guerra, de sítio e de emergência.
“Então, o estado de calamidade não está na Constituição, logo, é uma decisão (de proibição da manifestação) administrativa, tomada pelo governo da província, é uma decisão política, que é inconstitucional”, garantindo que “nos termos da Constituição, pode-se sim realizar manifestação”. Provavelmente a excelsa e inarrável governadora de Luanda, Joana Lina, irá sugerir a exoneração da Constituição e o Presidente assinará por baixo.
Já o antigo bastonário da Ordem dos Advogados de Angola, Inglês Pinto, defendeu que sejam verificadas as condições de realização da manifestação, porque “não há nenhum decreto que restringe direitos fundamentais”.
“Agora o exercício é que é condicionado àquelas medidas de protecção, eu posso fazer uma manifestação com as medidas que são colocadas, que eles restringiram a aglomeração a cinco pessoas”, frisou.
De acordo com Inglês Pinto, é preciso analisar o efeito prático da legislação, lamentando que “há um problema muito sério de interpretação dessas medidas, em termos de eficácia da legislação”.
“As pessoas não podem fazer aglomeração de cinco pessoas, mas se vão apanhar o autocarro como é que fica? Fica na paragem uma fila de 500 metros, cinco em cinco metros uma pessoa, não é? Há que se aplicar a legislação em função da realidade concreta, deviam ser mais claros sobre quais são os casos excepcionais”, referiu.
“Por exemplo, em Lisboa houve a peregrinação a Fátima, as pessoas marcaram distância de um metro e meio cada cidadão, agora na Fórmula I já ficaram todos sem distanciamento, mas no campo de futebol via-se as pessoas nas bancadas separadas. Isto é uma questão de interpretação, agora o pessoal não tem grandes capacidades de interpretar a legislação do que se produz e efeitos práticos, esse é que é o problema”, acrescentou.
Folha 8 com Lusa